Joel Pires
João levantou-se cedo e fez a primeira oração do dia. Agradeceu a Deus pela vida. Lembrou-se da mulher e dos filhos. Pediu proteção. Ao sair de casa, elevou os pensamentos mais uma vez, e o olhar em direção ao céu. Beijou a companheira e seguiu com o filho mais novo. A jornada seria longa. Maria ficava com o coração aflito, mas a fé apascentava-lhe o espírito. A Bíblia estava aberta no salmo 25. Mulher forte, não sucumbia às dificuldades da vida; enfrentou provações: fome, doenças e morte. Guardava a saudade do primogênito, Esaú.
Seu João tocava a boiada com cuidado. Tangia a multidão. No caminho, grotões, serras, abismos, onças e o Rio das Almas. De longe, ouvia-se o aboio: aooooô! Neguinha, Mimoso, Malhada obedeciam ao comando. Desciam lentamente a serra, como num cortejo. O trieiro tortuoso, socado pelas pisadas, condicionava a passada. Zezim, o caçula, voltava e reconduzia a rês perdida, desviada. Alguns animais retesavam, resistiam: o instinto falava mais alto. Porém, na toada do berrante, iam todos, misturados à poeira e à vegetação. Não se distinguia boi, nem boiadeiro; apenas a marcha constante. Um assum-preto voou rasteiro.
O canal estava logo ali na frente, traiçoeiro, à espera da passagem. Boi de piranha: esse é o nome dado ao animal sacrificado para que a manada passe pelo rio em segurança. Neguinha deveria seguir primeiro, para a salvação dos demais. Como bode expiatório, simplesmente foi a escolhida. A água fervilhou assustadoramente. José disfarçou uma lágrima e ajudou o pai na travessia.